«Alexandre Castanheira na minha memória
Por volta de 1943, em plena Segunda Guerra Mundial, em que se travava uma luta de vida ou de morte pela Democracia, e ainda as hostes nazi-fascistas estavam na mó-de-cima, alguns jovens empreenderam na então pacata vila de Almada uma dinamização cultural. Criaram a Biblioteca Popular da Academia Almadense, ressuscitaram a dúzia de livros esquecidos (desde 1931) num escaparate de outra colectividade, a Incrível, promovem palestras e recitais de poesia por outras agremiações. E é por essa ocasião que todos nós começamos a notar a presença de um jovem de 15 anos de idade, loiro e de fino aspecto, que muito interessado se mostra por todas essas actividades de esclarecimento da população.
Por essa altura, ainda a Academia se encontrava de relações cortadas com a velha Sociedade Filarmónica Incrível Almadense (esta fundada em 1848, em pleno reinado de D. Maria II, no rescaldo da Revolução da Maria da Fonte, que apeara a ditadura de Costa Cabral, e que, dada a tremenda dificuldade em se constituir nessa altura uma associação popular – já nesse tempo… -, adoptou o nome insólito de Incrível…), situação anómala e lastimável que não dignificava uma vila de trabalhadores, tão progressiva como Almada.
Esse jovem, de nome Alexandre Castanheira, aluno liceal e mais tarde universitário sem que tivesse perdido ano algum (um aluno distintíssimo e mui prometedor, como nestas circunstâncias são noticiados no carnet mondain os meninos-bem…), além do estudo dedicava já um amor visceral à vida associativa da sua terra e um acrisolado interesse pelo povo trabalhador.
Até aqui nada haveria a acrescentar sobre este rapaz, pois o Alexandre Castanheira começava como todos nós e até como muitos outros, que, infelizmente, após o curso universitário e o casamento, se acomodam, tratam da vidinha, esquecendo tudo e todos sem o mínimo respeito pelas antigas opiniões e atitudes.
Mas com aquele jovem loiro (que assinava agora os primeiros poemas com o pseudónimo de Edgard Castanheira) tudo se iria processar, e exemplarmente, de modo diferente. Sem o mínimo esmorecimento foi galgando os anos liceais e universitários, dando ao mesmo tempo uma importante colaboração às actividades culturais do concelho de Almada. Palestras, recitais de poesia (colaborou até com o Orfeão da Academia de Amadores de Música, dirigido pelo Fernando Lopes Graça), aulas de francês, cargos directivos na Incrível e no Grupo Campista. Que fogos de campo ele organizou!
(…)
Em 1947, pertencia à Comissão Central do MUD Juvenil, actividade que prolongou por mais sete anos. Veio a campanha do general Norton de Matos como candidato à Presidência da República, e a voz do Alexandre foi ouvida em todo o distrito de Setúbal.
Claro que, entretanto, a Pide havia preenchido já a sua ficha de anti-fascista e anotado essa actividade consequente ao ponto de o hospedar por várias vezes nas suas enxovias. Aqui não deve ser olvidada a actividade colaborante de sua Mãe – uma grande e corajosa mulher! – que, sem descanso, lutou nas negras horas pela libertação do filho. Abaixo-assinados, surtidas à sede da polícia política, tão insistentes e intimoratas que obteve (naqueles vergonhosos tempos!) permissão de ser recebida e de até discutir com o chefe supremo da Pide de então, o famigerado Neves Graça.
Por volta de 1954 (perdoa, caro leitor, a citação destas datas!), o Alexandre, com a licenciatura de Histórico-Filosóficas concluída, desapareceu do nosso convívio. Os pais haviam saído de Cacilhas para outro lugar, e nós pouco ou quase nada sabíamos do destino daquele jovem doutor, que tão bruscamente se eclipsara dos amigos e do movimento associativo almadense.
No Outono de 1956, viajávamos numa camioneta nos arredores de Lisboa, quando nos tocam nas costas. Era ele! Mas sempre o mesmo: risonho, jovem e irrequieto de esperança. E não tardou a explicação da ausência: militava no Partido Comunista Português e mergulhara na clandestinidade sem demora, porque não podia continuar a viver dentro e fora da cadeia…
Mais vinte anos vão decorrer sem que o cidadão Alexandre Castanheira visite a terra natal. Todos sabemos que reside em França e é membro do sindicato CGT da fábrica de automóveis Renault, exercendo o cargo de secretário do Movimento Francês Contra o Racismo. No exílio, licenciou-se igualmente em Letras Modernas Francesas, pela Universidade de Paris. A sua absorvente actividade social e política, na luta travada contra a ditadura fascista, limitou, como é natural, o professor e o poeta nas suas realizações.
Após o 25 de Abril, este nosso querido amigo visita por duas vezes a sua (e nossa) terra natal, e em ambas as permanências presenteia os patrícios com palestras e recitais de poesia. E, da última vez que nos abraçamos, entrega-nos uma peça teatral, intitulada Chico do Norte, com o pedido de que lhe acrescentemos algumas palavras de apresentação.
Chico do Norte é um belo e corajoso texto teatral elaborado para a defesa da Reforma Agrária, a conquista maior da Revolução de Abril. Peça didáctica, muito precisa nos seus objectivos, servida por figuras e problemas dos nossos campos, homens e mulheres mergulhados em moral-velha, de figurino feudal, e espoliados desumanamente no viver quotidiano.
Ao longo de dois actos e um epílogo, o autor retrata uma família de camponeses nortenhos – Chico Carrapeto e os seus –, que se debate entre a hipoteca da courela ao agrário-insaciável e a miragem-recurso da emigração.
(…)
Mas lentamente, muito lentamente (como a consciência de classe é, por vezes, morosa a conquistar os próprios interessados!), homens e mulheres ganham lucidez e descobrem o lado (o seu lado) da razão e os remédios para debelarem tanta miséria.
Almada, 20 de Outubro de 1977»
Romeu Correia
(No prefácio a “Chico do Norte”, texto para Teatro, de Alexandre Castanheira. Setúbal, 1977)
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Biografia de Romeu Correia:
Por volta de 1943, em plena Segunda Guerra Mundial, em que se travava uma luta de vida ou de morte pela Democracia, e ainda as hostes nazi-fascistas estavam na mó-de-cima, alguns jovens empreenderam na então pacata vila de Almada uma dinamização cultural. Criaram a Biblioteca Popular da Academia Almadense, ressuscitaram a dúzia de livros esquecidos (desde 1931) num escaparate de outra colectividade, a Incrível, promovem palestras e recitais de poesia por outras agremiações. E é por essa ocasião que todos nós começamos a notar a presença de um jovem de 15 anos de idade, loiro e de fino aspecto, que muito interessado se mostra por todas essas actividades de esclarecimento da população.
Por essa altura, ainda a Academia se encontrava de relações cortadas com a velha Sociedade Filarmónica Incrível Almadense (esta fundada em 1848, em pleno reinado de D. Maria II, no rescaldo da Revolução da Maria da Fonte, que apeara a ditadura de Costa Cabral, e que, dada a tremenda dificuldade em se constituir nessa altura uma associação popular – já nesse tempo… -, adoptou o nome insólito de Incrível…), situação anómala e lastimável que não dignificava uma vila de trabalhadores, tão progressiva como Almada.
Esse jovem, de nome Alexandre Castanheira, aluno liceal e mais tarde universitário sem que tivesse perdido ano algum (um aluno distintíssimo e mui prometedor, como nestas circunstâncias são noticiados no carnet mondain os meninos-bem…), além do estudo dedicava já um amor visceral à vida associativa da sua terra e um acrisolado interesse pelo povo trabalhador.
Até aqui nada haveria a acrescentar sobre este rapaz, pois o Alexandre Castanheira começava como todos nós e até como muitos outros, que, infelizmente, após o curso universitário e o casamento, se acomodam, tratam da vidinha, esquecendo tudo e todos sem o mínimo respeito pelas antigas opiniões e atitudes.
Mas com aquele jovem loiro (que assinava agora os primeiros poemas com o pseudónimo de Edgard Castanheira) tudo se iria processar, e exemplarmente, de modo diferente. Sem o mínimo esmorecimento foi galgando os anos liceais e universitários, dando ao mesmo tempo uma importante colaboração às actividades culturais do concelho de Almada. Palestras, recitais de poesia (colaborou até com o Orfeão da Academia de Amadores de Música, dirigido pelo Fernando Lopes Graça), aulas de francês, cargos directivos na Incrível e no Grupo Campista. Que fogos de campo ele organizou!
(…)
Em 1947, pertencia à Comissão Central do MUD Juvenil, actividade que prolongou por mais sete anos. Veio a campanha do general Norton de Matos como candidato à Presidência da República, e a voz do Alexandre foi ouvida em todo o distrito de Setúbal.
Claro que, entretanto, a Pide havia preenchido já a sua ficha de anti-fascista e anotado essa actividade consequente ao ponto de o hospedar por várias vezes nas suas enxovias. Aqui não deve ser olvidada a actividade colaborante de sua Mãe – uma grande e corajosa mulher! – que, sem descanso, lutou nas negras horas pela libertação do filho. Abaixo-assinados, surtidas à sede da polícia política, tão insistentes e intimoratas que obteve (naqueles vergonhosos tempos!) permissão de ser recebida e de até discutir com o chefe supremo da Pide de então, o famigerado Neves Graça.
Por volta de 1954 (perdoa, caro leitor, a citação destas datas!), o Alexandre, com a licenciatura de Histórico-Filosóficas concluída, desapareceu do nosso convívio. Os pais haviam saído de Cacilhas para outro lugar, e nós pouco ou quase nada sabíamos do destino daquele jovem doutor, que tão bruscamente se eclipsara dos amigos e do movimento associativo almadense.
No Outono de 1956, viajávamos numa camioneta nos arredores de Lisboa, quando nos tocam nas costas. Era ele! Mas sempre o mesmo: risonho, jovem e irrequieto de esperança. E não tardou a explicação da ausência: militava no Partido Comunista Português e mergulhara na clandestinidade sem demora, porque não podia continuar a viver dentro e fora da cadeia…
Mais vinte anos vão decorrer sem que o cidadão Alexandre Castanheira visite a terra natal. Todos sabemos que reside em França e é membro do sindicato CGT da fábrica de automóveis Renault, exercendo o cargo de secretário do Movimento Francês Contra o Racismo. No exílio, licenciou-se igualmente em Letras Modernas Francesas, pela Universidade de Paris. A sua absorvente actividade social e política, na luta travada contra a ditadura fascista, limitou, como é natural, o professor e o poeta nas suas realizações.
Após o 25 de Abril, este nosso querido amigo visita por duas vezes a sua (e nossa) terra natal, e em ambas as permanências presenteia os patrícios com palestras e recitais de poesia. E, da última vez que nos abraçamos, entrega-nos uma peça teatral, intitulada Chico do Norte, com o pedido de que lhe acrescentemos algumas palavras de apresentação.
Chico do Norte é um belo e corajoso texto teatral elaborado para a defesa da Reforma Agrária, a conquista maior da Revolução de Abril. Peça didáctica, muito precisa nos seus objectivos, servida por figuras e problemas dos nossos campos, homens e mulheres mergulhados em moral-velha, de figurino feudal, e espoliados desumanamente no viver quotidiano.
Ao longo de dois actos e um epílogo, o autor retrata uma família de camponeses nortenhos – Chico Carrapeto e os seus –, que se debate entre a hipoteca da courela ao agrário-insaciável e a miragem-recurso da emigração.
(…)
Mas lentamente, muito lentamente (como a consciência de classe é, por vezes, morosa a conquistar os próprios interessados!), homens e mulheres ganham lucidez e descobrem o lado (o seu lado) da razão e os remédios para debelarem tanta miséria.
Almada, 20 de Outubro de 1977»
Romeu Correia
(No prefácio a “Chico do Norte”, texto para Teatro, de Alexandre Castanheira. Setúbal, 1977)
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Biografia de Romeu Correia:
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