terça-feira, 2 de setembro de 2008

Armindo Rodrigues - O poeta do lirismo que nos interroga e inquieta



(artigo de Domingos Lobo, publicado no semanário Avante! )


A primeira abordagem que fiz à poesia do Armindo Rodrigues foi através de José Gomes Ferreira. Teria eu, por essa altura, os meus treze anos e já muito descaramento. Encontrava o autor de Eléctrico à mesa do Monte Carlo (os poetas que eu admirava, nesse tempo, frequentavam cafés como o comum das gentes, não arvoravam poses de vedetas em transe, nem eram empertigados inacessíveis) e impingia-lhe os meus trôpegos poemas. À mesa, o José Gomes – com o Carlos de Oliveira, o Abelaira (nem sempre), o Mário Castrim – lia a coisa e determinava solene: Este, Castrim, merece publicação no teu Juvenil.


Numa dessas manhãs de fuga ao liceu, o José Gomes Ferreira recomendou-me, para te afastares desse romantismo imberbe, rapaz, leituras de poemas de Armindo Rodrigues e Manuel da Fonseca.
A biblioteca das Galveias, meu poiso habitual de leituras por grosso tinha, nos fundos perdidos de uma estante, dois livros do Armindo Rodrigues: A Vida Perto de Nós e Paz Interior. E foi uma descoberta tão esfuziante, tão emocionada, que me recordo de ler aos meus amigos, como eu igualmente deslumbrados pela claridade rasante daquela escrita, nessa mesma noite, uma série de poemas de Paz Interior.
Com os poemas do Manuel da Fonseca tive menos sorte: só um ano e picos depois do José Gomes mo ter recomendado é que consegui ler Rosa-dos-Ventos, numa velha edição que o meu amigo Vladimiro Franklin trouxera de Santiago do Cacém e que guardava religiosamente. Essa usura púbere não nos impediu de irmos parar à esquadra de Santa Marta por andarmos a ler, a desoras e aos berros, em plena Avenida da Liberdade, o poema Domingo.
O novo que a poesia de Armindo Rodrigues nos revelava, não era de estilo ou de ruptura (havia então, um tanto por culpa da Presença, e ainda hoje persiste na literatura portuguesa, a estranha obsessão do estilo, vertigem essa que tenta esconder, na maior parte dos casos, o vazio de pensamento) era, sobretudo, de conteúdo. A poesia de Armindo Rodrigues abria ao pensamento e à reflexão, ao questionar-se, ao interrogar-se, o poeta interrogava-nos. Era, desse modo, em sua orgânica substância, uma poesia incómoda e subversiva, alheia, no entanto, aos modismos panfletários cuja exaltação raramente correspondia a uma coerente e efectiva maneira de estar na vida (e na poesia) dos seus autores.


A memória e a esperança às vezes dão-se as mãos.
São as horas cruciais em que o mundo desperta.
Então, só os homens vãos é que não são irmãos.
Então, nem uma porta há que não seja aberta.

in «Sabor do Tempo».


Da têmpera de que são feitos os homens de coragem, de «antes quebrar que torcer», Armindo Rodrigues cedo assumiu a sua condição de opositor ao fascismo, cedo ergueu a sua voz indignada contra a opressão, cedo conheceu as masmorras da PIDE. Essa sua postura cívica está patente nos últimos versos do belíssimo poema – eivado de nostalgia pelos caminhos da infância, de resto, só tenho saudades do futuro, escreveu nas suas memórias – no qual o poeta evoca o avô, lutador contra a Monarquia, e relembra uma visita ao Alentejo, espaço mítico (esse chão vermelho) que ocupa um lugar sentido (e sofrido), em diversos poemas da sua vasta obra: Meu avô/tem confiança/na decisão do teu neto,/que nunca te negará/nem baixará o olhar,/mesmo que o ponham de rastos,/mesmo que o queiram matar (2). Esta postura de coragem, reflecte o carácter vertical do poeta, médico e comunista, que Armindo Rodrigues sempre foi no percurso de uma longa, singular e profícua existência de quase 90 anos (1904-1993).


Para as novas gerações, para aqueles a quem, de forma insensata e suicida, os poderes instalados tentam expurgar a memória do que foram os 50 anos de fascismo (e não basta, por muito meritórios, importar modelos televisivos, para que a memória cumpra o seu dever histórico de esclarecer e inquietar) e que, hipocritamente, vai permitindo que neste vazio ideológico alguns saudosistas e revanchistas travestidos de democratas, pretendam erguer em Santa Comba Dão (terra que não tem culpa que os ditadores nasçam em seu chão) um monumento ao fascismo, que se tornará, a ser construído, santuário para romagens de agravados de todos os cantos da Europa reaccionária, recomendo o livro de memórias de Armindo Rodrigues, livro a vários títulos notável, que o poeta escreveu em final de vida, intitulado Um Poeta Recorda-se (Edições Cosmos). Se o desnorte intelectual e pedagógico não campeasse ufano pelas ministeriais cabeças da 5 de Outubro, este livro há muito seria de leitura recomendada no ensino secundário (e O Irreal Quotidiano, Gaveta de Nuvens, O Sabor das Trevas, de José Gomes Ferreira).
Mas a memória, sobretudo a do período mais negro do salazarismo, é para esquecer não vá o Povo começar por aí a congeminar e não descobrir, no conteúdo das políticas, grandes diferenças entre o fascismo e esta socrática democracia.


Do poeta solidário, questionador insubmisso da realidade portuguesa, sabemos-lhe os versos, apesar das tentativas subterrâneas de escamoteamento – os versos estão aí publicados, perfazendo 24 títulos, sem esquecer a notável antologia organizada por José Saramago, O Poeta Perguntador – versos que continuam a incomodar, vivos de denúncia e actualidade: lá fora o calor abrasa./Aqui em casa, está fresco,/e para aumentá-lo ainda/regou-se o chão de ladrilho./Mas é aqui que o calor/lá de fora me entorpece/é lá fora que os meus sonhos/se sonham, ermos e aflitos (3).


Dos sonhos de Armindo Rodrigues, dos sonhos que sonhamos acordados, vividos na rua, ungidos na luta, estamos prenhes, até porque a realidade deste país continua a convocar-nos a indignação e a revolta e, por isso, com o poeta estamos nessa denuncia amarga e a cada dia mais urgente: E o futuro começou com a Revolução mais grandiosa e profunda de que a Humanidade, na sua convulsa história foi capaz, e continua, e há-de continuar a frutificar, onde quer que a injustiça, a infâmia e a exploração campeiem, para final triunfo da igualdade, condição sem a qual a liberdade é vácua, e desespero de todos os grandes capitalistas poderosos e sem escrúpulos, e os seus lacaios arrogantes e sem vergonha. Só isto não vê quem teima em ser cego, e prefere à fraternidade franca a ganhuça sórdida, à paz universal a opressão e a sangueira, ao progresso efectivo para todos a sua exploração em benefício de alguns, ao trabalho o desemprego, à abundância a fome, à cultura a ignorância, ao amor o ódio (4).
Armindo Rodrigues é o poeta da palavra exacta, certeira, lisa e dúctil, onde perpassa a essência da vida e do sentido mais extenso da fraternidade e do pensamento num mundo outro e melhor, com a firmeza das convicções, mesmo quando o rumor da dúvida existencial as percorre indelével:



RUMO

Ergue-se
do mundo
em mim o que sou.
Estou talvez só.
Mas com decisão
na dor o aceito.

Que importa o rumo
por que sigo
ser imperfeito?

Exacto e duro,
tudo procuro
compreender.
Pensar é ir.
Ir é ser. (5)



Um poeta a descobrir, a redescobrir, de pé, com os sentidos bem despertos, como o José Gomes Ferreira fez comigo há quarenta e muitos anos – um poeta que traz, no atilho das palavras ainda urgentes, o futuro aceso.



(1) – Literatura e Luta de Classes – de Augusto da Costa Dias (Editorial Estampa)

(2) – Romanceiro e Canções de Um Menino Perdido – Armindo Rodrigues (Soc. de Expansão Cultural)

(3) – idem

(4) – Um Poeta Recorda-se – Armindo Rodrigues (Edições Cosmos)

(5) – A Esperança Desesperada – Armindo Rodrigues (Soc. Expansão Cultural)


Domingos Lobo

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